20 de outubro de 2011

Primavera nos Dentes


Vou dar uma breve pausa nos textos de investigação metodológica e/ou sobre historiografia para comentar algo um pouco mais próximo da minha realidade como pesquisadora.

Eu trabalho (no momento) com uma pesquisa de linha crítico-metodológica em Egito faraônico, mas é impossível não acompanhar os desdobramentos políticos do Egito atual desde janeiro deste ano - no que ficou conhecido como a "Primavera Árabe".

Já de cara eu não gosto muito desse nome: é uma alcunha ocidental sobre conflitos internos de poder em um universo cultural que não é tão homogêneo quanto gostaríamos de admitir. Graças à CNN e outros veículos de notícia somados a uma intensa propaganda orientalista norte-americana passamos a enxergar, no pós 11 de setembro, tudo que leva o título árabe como pertencendo a um grupo étnico-cultural só. Se essa generalização já era comum desde a Idade Média, com a guerra contemporânea ao "terror" ganhou um reforço ainda maior.

De acordo com as informações que nos são impostas todo árabe é mulçumano, todo país mulçumano tem um grupo extremista-radical, todo mundo tem ódio da civilização ocidental (isso por que eles não conhecem o McDonnalds).

Quando Edward Said cunhou o termo Orientalismo pela primeira vez sabia que estava encerrando mais de um conceito em torno da palavra: para ele Orientalismo não só era a prática de diferenciação imagética de uma lógica imperialista que procurava colocar o chamado Ocidente como superior ao conjunto mistificado do Oriente, como também era uma prática de análise cientificista que buscava "explicar" e "entender" o Oriente (tomado todo como um conjunto só) para o Ocidente (esse sim fragmentado culturalmente por ser superior). O orientalismo descrito por Said pode ser facilmente percebido quando aparecem os "especialistas em mundo árabe" em diversos telejornais explicando pra população que árabes são maus e invejam as maravilhas do mundo ocidental que não tem, são cruéis com suas mulheres e radicais em seus pontos de vista.

Construída essa imagem ocidentalizada e revestida de um caráter científico, parece fácil entender o que aconteceu de janeiro pra cá - os povos árabes finalmente se cansaram das suas ditaduras e resolveram que queriam uma democracia perfeita como a nossa [insira sua ironia aqui] e, coitados, mesmo saindo nas ruas e pegando em armas, eles ainda tem que lidar com grupos radicais que querem tomar o poder no segundo imediato e como bons ocidentais, detentores da verdade e justiça, só nos resta acompanhar o processo e impedir que aconteça um massacre. Estados Unidos, União Européia e ONU já foram avisadas para ficar de prontidão caso algum barbudo de turbante tome o poder, e ajudar esses pobres coitados a encontrar o caminho da igualdade, dos direitos humanos e do KFC mais próximo.

Lindo, né?

Pra começo de conversa, nem sei se todo árabe é mulçumano. Árabe é o termo que descreve todo um conjunto cultural, linguístico e social anterior ao Islã. Os árabes mulçumanos (pra mim, isso não é uma redundância) não representam a totalidade da cultura árabe. Existem sim, árabes não-mulçumanos; além de povos das regiões do mediterrâneo, oriente médio e áfrica que não se encaixam nem na descrição de árabes, nem pertencem ao islamismo, mas convivem e se relacionam com ambos os aspectos sócio-culturais destes grupos.

No processo de crise religiosa que gerou o monoteísmo, o Islamismo foi uma das últimas religiões a alcançar o desenvolvimento e expansão, justamente por ser originalmente decorrente das duas principais religiões monoteístas: Cristianismo e Judaísmo. O Islamismo se coloca como versão final das religiões anteriores ao incluir Maomé como profeta final da palavra de deus, num a linha sucessória que inclui Abraão, Moisés e Jesus. Portanto, desde sua origem o Islã nunca negou sua ligação com as chamadas religiões bíblicas (ou Religiões do Livro, como os próprios mulçumanos se referem), mas como qualquer grupo ou cultura que busca legitimação em seu discurso, considera a sua versão e interpretação superior às outras.

Assim como outros grupos culturais-religiosos, que invariavelmente vemos como um grupo só, o Islamismo tem suas correntes e divisões teóricas e diversas teologias explicativas, mesmo que volta e meia se divida o islamismo apenas entre Sunitas e Xiitas. Curiosamente, a maioria das divisões do Islã vem do olhar externo e não interno, já que poucos grupos se preocupam em se autodiferenciar do resto como uma ramificação nova. A grande maioria dos grupos mulçumanos se dividem por questões doutrnárias e não políticas, como é dito por aí.

A questão política ganha uma dimensão muito mais sensível porque, ainda que existam teóricos internos de uma unidade árabe, a maioria dos conflitos internos são doutrinários e até nesmo no caso de algumas formas de governo antigas (como os califados) a justificativa é comportamental e religiosa, não puramente política. Levando-se em conta a configuração local interna do oriente médio (e de algumas regiões mulçumanas fora do crescente fértil) não se pode discutir política árabe (outro termo jogado ao vento displicentemente) sem levar em consideração a interferência externa do conjunto cultural ocidental, desde o imperialismo até os dias de hoje; e de forma mais aguda da segunda metade do século XX pra cá.

Não vou me estender no desenvolvimento das relações políticas no oriente médio em 3 séculos (bem que eu gostaria, mas não vou matar ninguém de tédio, nem escrever um livro hoje), mas é visível que, como em qualquer processo de interferência ou contato cultural, quando os diversos conjuntos culturais de ambos os lados se encontram, ocorre uma transformação de identidade e surgem diversas reações de diferenciação e legitimação. Os grupos políticos árabes em sua maioria são respostas não só à questões internas, mas principalmente à interferências externas.

Assim como o Talibã surgiu após a influência norte-americana no conflito da União Soviética com o Afeganistão, diversos segmentos de base política surgiram como reação aos fatores externos e, por seu caráter político passaram a dominar a base de construção orientalista. Se já era complicado estabelecer um retrato do universo árabe em todas as duas dimensões, ao privilegiar os movimentos de reação em detrimento das culturas pre-existentes (que também reagiram de diversas formas), a imagem do chamado mundo árabe ganhou a face do terror por excelência. Tanto a dinâmica interna quanto a dinâmica das relações externas foi afetada e até mesmo as construções de estruturas políticas após a década de 70 são influenciadas pela dinâmica externa. Grupos novos, ditadores, militarismo, conflitos religiosos foram todos impactados com isso.

Portanto, em suma, é muito difícil diferenciar o que é conflito decorrente de interferência externa e o que é conflito interno, porque em alguns casos conflito interno é uma reação à fatores externos e em outros o paternalismo ocidental se arvora do direito de intermediação para regular decisões internas. 

Depois de questionar toda e qualquer generalização vou cair em uma propositalmente: existe sim um processo de crise ideológica e política interna em países árabes do oriente médio, mas esse processo é condicionado tanto por fatores externos, quanto por fatores internos. E, ao contrário do que nosso orgulho ocidental prega, não necessariamente existe uma marcha pela democracia em curso ao qual devemos tutelar. Muitos dos casos (especialmente no Egito e na Líbia) a crise política interna é uma reação a uma crise social interna, agravada por governos que elegeram questões externas como foco político. A onda de legitimação popular no Egito, por exemplo (caso que eu acompanho muito de perto), tem como base de revindicações questões como salários, representatividade política, gastos públicos e leis arbritárias recentes que amplificaram separatismos contra a lógica interna do país. Pode parecer estranho, mas muitos egípcios estranharam a radicalização de costumes pós 11 de setembro, bem como a lei que obriga o cidadão a declarar publicamente sua religião em documentos oficiais. A introdução de uma questão de conflito externo na lógica interna gerou mais tensões contra governo do que pró. Além disso, a priorização de assuntos externos em meio a uma crise interna rachou a legitimidade do governo de Mubarak. 

Não que esse processo esteja livre de influência externa: o povo que ganhou as ruas pautou suas revindicações em redes sociais e no contato com o mundo externo. Muitos tem uma visão de questionamento baseado sim em modelos de governos ocidentais, e tentam ao mesmo tempo conciliar a lógica de sua cultura com elementos vindos de lógicas externas. Fora isso nem todos os grupos culturais tem a mesma visão acerca da construção do que virá depois da queda de Mubarak, o que leva a discussão a um patamar mais agudo sobre a representatividade desses grupos internos. Pra temperar tudo isso, vem a visão externa para interferir e julgar os elementos internos de acordo com a sua própria lógica de organização e não a lógica interna desses grupos.

Um exemplo disso foi o texto que li essa manhã, uma análise no mínimo perdida em seu orientalismo chulo regada de fatores e julgamentos ocidentais sem o menor conhecimento das dinâmicas internas. O texto entitulado "Cristãos Perseguidos" (publicado pela Isto é, pode ser lido aqui) faz uma salada mista azeda ao colocar os cristãos coptas egípcios como mártires de um radicalismo mulçumano dentro (e pasmem, fora) do Egito. 

O texto começa justamente falando da "filiação religiosa" que deve constar na identidade - medida recente do governo Mubarak, que foi em grande parte contestada pela própria sociedade egípcia - e fala sobre a morte de cristãos coptas em conflitos na capital, oscilando entre saudar a "Primavera árabe" como o início de uma luta por representatividade copta e como uma espécie de buraco negro na organização política no país onde grupos radicais lutam para tomar o poder. Os coptas, vítimas históricas do islã, estariam reagindo em desespero mediante o possível terror de uma extinção étnica e seriam mártires justificados de uma verdadeira revolução democrática. Lógico que como todo texto orientalista cientificista, a retórica é reforçada por uma série de números e porcentagens, dados estatísticos sobre perseguições de grupos cristãos no mundo (coletas feitas por institutos americanos, obviamente) e coroado por uma declaração de preocupação de Barack Obama e do Papa Bento XVI (que até onde eu saiba, não responde como autoridade copta). Toda a pseudo-preocupação com questões de direitos humanos coloca uma condenação no Paquistão como exemplo do possível radicalismo mulçumano no Egito.

Edward Said, me abraça!

Detalhe rápido, o texto fala da condenação da paquistanesa Asia Bibi nos seguintes termos: "Ela é a primeira mulher na história a receber uma pena de morte por conta de perseguição religiosa." As mulheres condenadas pela Inquisição e Hipátia de Alexandria mandaram um beijo.

Poderia contestar os pontos de argumentação do texto um a um, mas basta uma busca rápida sobre notícias do conflito no google para ver que a posição do grupo copta no Egito é bem mais complexa do que parece: Antonio Luiz M. C. Costa descreve neste texto na Carta Capital o desenvolvimento das relações do grupo cristão copta dentro da sociedade egípcia e exprime de maneira clara que essas relações sempre variam com o aspecto político e que fatores externos podem usar a questão interna egípcia como estopim para um conflito mundial (apesar de eu discordar um pouco das conclusões finais sobre as alternativas de saída do conflito). Para reforçar isso, a Irmandade Mulçumana tenta deixar claro que há uma intenção de debate com os cristãos, mas que no momento há um temor que os cristãos sejam utilizados como alvo de grupos externos (conforme expressado em um comunicado à imprensa). Na verdade desde a eclosão de janeiro, já havia o temor que os coptas se tornassem o cordeiro sacrificial de uma radicalização política, principalmente como alvo de ataques no Natal Copta (comemorado dia 6 de Janeiro) e posteriormente a oscilação política e ausência de poder estrutural os tornassem vítimas da Revolução por uma unidade mulçumana em meio a um futuro incerto.

O que todos os artigos e notícias linkados acima exprimem é que a relação copta-mulçumana não é uma novidade no Egito, mas que tem sido amplificada e radicalizada em termos de uma retórica externa. Até mesmo o texto da Isto é coloca essa retórica em pauta, desesperadamente tentando provar por A + B que existe um conflito religioso prestes a explodir, quando na verdade é a lógica externa que estimula um conflito político em meio a uma população que não tem uma percepção sectária tão reforçada.

Óbvio que essa relação não é feita de flores e poemas, nem que a Irmandade Mulçumana é tão santa quanto apregoa - a questão é que na esteira de uma reestruturação política e em busca de um novo poder que tenha legitimidade interna e externa eles sabem perfeitamente que os coptas na rua, que vislumbraram na queda do regime a chance de lutar por sua representatividade, podem ser o tiro no pé que invalide todo o processo interno e o bode expiatório que deflagre uma invasão ocidental.

Toda relação entre as esferas mulçumana - árabe - ocidental - liberal - democrata é marcada por tensões e os novos poderes e estruturas no oriente médio tem um desafio monumental de lidar com pressões externas e internas o tempo todo. Sem nem mencionar que o liberalismo democrata norte-americano, em vias de abdicar da posição de liderança mundial, está seco por um pretexto para se manter como baluarte e salvaguarda do mundo e os conflitos presentes são um prato cheio para desviar o assunto da crise interna. Ou vocês acham que foi pura coincidência o cadáver de Kadhafi aparecer 2 dias depois da chegada de Hilary Clinton à Tripoli?

O que pode e deve ser questionado é a construção da visão que temos desse universo de sociedades que chamamos de mundo árabe. É muito fácil jogar questões internas nossas em cima de uma cultura completamente diferente, com respostas e reações múltiplas e com processos internos de transformação ocorrendo. Ao mesmo tempo, parte desses processos vêm de interferências políticas externas, a ponto de não ser claro o que é conflito interno ou externo. E somado a isso, algumas das revindicações não são tão diferentes assim - no fundo são sociedades cansadas de exploração política, corrupção e ausência de garantias, direitos e presença do poder público que questionam quão legitimo é o poder que prefere focar em questões externas do que tratar seus problemas internos.

Ainda é cedo pra dizer se isso gestará um novo mundo árabe ou talvez uma nova lógica mundial com a crise do liberalismo imperialista. Mas relendo a lista de revindicações dá pra notar que, aspectos culturais e religiosos a parte, não somos tão diferentes assim. E enquanto o liberalismo agoniza sob a forma de neoliberalismo, tentando apagar alguns incêndios que ajudou a criar, o questionamento crítico volta a derrubar poderes e lógicas no mundo.

Mas isso já é assunto para outro post...

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