11 de fevereiro de 2012

Mil Folhas, Muros e Árvores de Natal

Xingar o governo é fácil.

Reclamar de leis, da dança das cadeiras em ministérios, da ausência do poder público, da demora de tal mudança, da rapidez daquela outra, etc.
 
Não que reclamar seja o problema, já que é importante manter uma atitude crítica perante todo e qualquer governo. O condicionamento entre reclamação e ação também não é exatamente sempre uma lacuna, uma vez que a postura crítica, quando verbalizada, se torna um indício e até mesmo um sinal de transformações - ainda que por muitas vezes esse desejo esteja limitado a um grupo ou categoria, que acaba não entendendo o porquê de sua crítica não ser efetivada.

#ForaSarney não tira ninguém do poder, mas emite um sinal de pensamento social importante, sem dúvida. 

Já de cara daria para constatar uma ausência de análise quando um tipo de expressão espontânea dessas surge e é imediatamente desqualificada enquanto fator de transformação na sociedade: A incapacidade de uma expressão de pensamento efetivar mudanças traduz que essa expressão talvez seja limitada ou mal direcionada. Ou até em uma análise mais ampla - e bem mais óbvia - ela ainda não traduz o pensamento de uma maioria significativa, cujo quantitativo mínimo seja capaz de transformar algo.

Mas a questão me traz aqui hoje está alguns degraus mais embaixo. Quanto dessas expressões de insatisfação são realmente capazes de compreender o complexo processo de formação histórica da organização política nacional?


Trocando em miúdos, quando reclamamos do governo, temos idéia de quê estamos reclamando? E o que isso tem a ver com a filosofia da história?

Quando analisamos uma sociedade, de acordo com o que chamarei aqui de filosofia da história inata (aquela que temos vagamente como aceita, ou ensinada na escola, mesmo que sublinarmente) separamos em etapas cronológicas as transformações ditas históricas e vemos essas mudanças em uma lógica linear progressiva. 

Exemplo rápido: Idade média ~> Feudalismo ~> Absolutismo ~> Crise do Absolutismo ~> Iluminismo ~> Era Moderna.

O que esse modelo excluí é a idéia de processo - geralmente não delimitado por recortes temporais - contínuo e de transformações sobrepostas. Quando falamos em "feudalismo" não vemos como um longo e demorado processo com consequências múltiplas, menos ainda como algo cuja efetivação não foi uniforme e constante. Não foi uma questão de tempo até atingir um ápice e depois desmantelar-se, já que não há como estabelecer o que teria sido um processo integral, mas um conjunto imenso de processos e com características particulares e regionais, além de uma não-pluralidade. Ou seja, o que aprendemos na escola como "feudalismo", na verdade são milhares de feudalismos, que apresentam características mais ou menos comuns - e que acabam sendo tomadas e repassadas como constantes invariáveis.

Então quando analisamos a nossa própria história, é comum procurarmos nela os parâmetros de análise que aprendemos em outras (quando estes não são ensinados também) - recortamos em períodos, caracterizamos cada um deles, buscamos uniformidade nas transformações, processos integrais (exemplo: quando Dom Pedro I decretou a Independência, todo o Brasil se tornou automaticamente Independente. Sem levarmos em conta, para citar um único caso, que a adesão do Estado do Grão-Pará só se deu em 15 de agosto de 1823, dentre outros...) e principalmente, saímos com a idéia de que quando um recorte acaba - um governo ou um novo modelo político substitui outro - todos os processos anteriores se encerram com ele.
As continuidades são frequentemente analisadas como mimeses (o Populismo de Getúlio sendo imitado por outros, por exemplo) ou como as chamadas "heranças políticas" (geralmente utilizadas mais como retórica contra grupos opositores do que como parâmetros de análise contínua) sem que se tenha real noção de como essas continuidades geralmente operam.

A ausência de ruptura significativa na ordem política também não ajuda. Não que não tivemos nenhuma ruptura, mas percebemos nossa história como algo "remendado e costurado", sem nenhum corte de transição drástico e efetivo. 

E de quem é a culpa disso? Só dos políticos ou de uma compreensão errada da História? 

Um mil folhas de creme pra quem disser: Dos políticos e Da incapacidade da academia em levar sua discussão ao povo e às salas de aula.


Há muito tempo a historiografia no Brasil (não só a "do Brasil", como também os metodólogos e historiadores de outras áreas) já entendem perfeitamente a noção de processo, de longa duração, de transformações sociais permanentes e atuantes mesmo em realidades posteriores. Todos nós colocamos adesivos no carro "Historiador não é Calendário!" e andamos para lá e para cá com Braudel debaixo do braço, mas raramente nos colocamos em posição direta de atacar uma compreensão enferrujada do próprio processo histórico nas trincheiras da educação (eu sei, foi cliché). Ainda deixamos ou aceitamos que o ensino na escola seja perfeitamente desconectado com a realidade acadêmica e que essa desconexão molde um princípio de pensamento que serve apenas a confundir a população acerca de sua própria história.

Sem falar que cai como uma luva nas intenções políticas nacionais. Já havia falado um pouco disso aqui.

Mas sem retomar completamente o assunto anterior, o que quero elaborar aqui é uma linha de questionamento baseada justamente na dissociação entre o que seria o pensamento do processo histórico na academia e nas ruas e o efeito que isso gera: O da não compreensão ampla dos processos aos quais estamos sujeitos e que ainda não conseguimos nos livrar. 

Óbvio que essa incompreensão parece andar de mãos dadas com as intenções políticas, uma vez que quanto mais confuso um povo, pior ele vota. Além da própria idéia de intervalos diferenciados ajuda tanto opositores quanto situacionistas, sejam eles de que lado forem: "Sua privatização não é a mesma da minha", etc. Também a continuidade é evocada, quando cai como uma luva (ou álibi): "isso é herança dos governos anteriores".

Porém, reforçando o que já disse anteriormente, mesmo quando se dá uma idéia de processo, esse não é visto no contexto histórico e nem como processo transformador ou até mesmo formador das correntes que se embatem (muitos são farinha do mesmo saco ideológico) e que se opoem em uma lógica mais ampla.

Um exemplo disso é a idéia paradoxal de que, apesar da não-ruptura que levou a sociedade de volta à democracia pós-regime militar - abertura negociada e transição suave ao invés de derrubada do regime - a constituição de 1988 ganha forma de Tabula Rasa da politica nacional, deixando para trás toda e qualquer herança nefasta da Ditadura.

Pode sim parecer contraditório acerca do que disse anteriormente sobre a Independência, mas uma coisa é estudar seus processos históricos em graus de complexidade, outra completamente diferente é ignorar que nos casos de negociação e transição houve continuidades que ainda operam na nossa sociedade. 

A História do Brasil precisa ser vista tal como se apresenta aos olhos mais atentos - um acúmulo contínuo de processos (nem todos infindos) que operam no nosso cotidiano e para isso é preciso entender que nem a Constituição de 88, por melhor que tenha sido elaborada, ignora processos políticos anteriores e carrega consigo elementos vindos de outras realidades, nem sempre ajustados para operar na nossa.

Me deparei com isso diretamente esses dias - estava estudando (por motivos de força econômica) a legislação da Previdência Social e necessidades imediatistas à parte, é de chorar de desespero a confusão acumulada nas leis que regem nossa aposentadoria. Nem dá pra resumir de forma simples, mas basta dizer que a legislação atual é um conjunto de penduricalhos de diversas transformações ao longo dos séculos. 

Isso mesmo, séculos. 

Começa no ano de 1888, com a instituição da aposentadoria dos trabalhadores dos Correios (primeira categoria a ter a aposentadoria definida na mesma lei que a criou) e passa pelas milhares de intervenções e mudanças, desde a criação dos diversos institutos de categorias (os IAPs) até a unificação no governo militar em um só instituto (INPS) e sua desvinculação do Ministério do Trabalho.

Parece simples, mas só a legislação que regimenta a aposentadoria no campo mudou pelo menos 5 vezes em 40 anos e só de Ministros exonerados do cargo, eu contei uma meia-dúzia. Sem entrar em pormenores das transformações legais (que são explicados em uma página específica do site do INSS). De 1974 a 2011 tivemos 25 Ministros em 37 anos, o que dá uma média de 1,48 anos para cada um, em um modelo de mandato presidencial de 5 ou 4 anos.

A impressão que me deu, pensando em todas as reclamações que ouço e leio sobre aposentadoria no país, é de que não adianta culpar fulano ou beltrano pela imensa colcha de retalhos que é a legislação do assunto. Mesmo levando em conta a roubalheira e os interesses individuais, ainda assim a confusão é quase ingerenciável e nenhuma reforma foi efetivada diretamente como definitiva. Talvez a intenção política seja essa mesma, de manter a bagunça, mas a contextualização de cada mudança costurada com a contextualização total resultam em uma confusão até na hora da reclamação e da insatisfação - não sabemos a quem acusar, ou a o quê. Escolhemos o pato favorito (que na verdade pode ser muito mais raposa que pato), mas nem sabemos ao certo qual o modelo que ele diz que "herdou" e nem o que foi feito disso. Simplesmente engolimos tudo como um mil folhas, sem prestar atenção nas diversas camadas que lá estão. Quando engasgamos, cuspimos o creme do recheio político que é usado para temperar as discussões e nos distrair das camadas principais.

Talvez uma metáfora melhor seria a de uma árvore de natal, com seus milhares de enfeites e luzes decorativas: trocamos de árvore, mas mantivemos todos os enfeites quebrados e remendados, junto a novos, colocados para disfarçar os velhos. Colocamos por cima as luzes todas emaranhadas, com lâmpadas falhando, remendos nos fios. Pusemos por cimas novas guirlandas e outras luzes. Tudo isso, em questão de pouco tempo acaba danificando a árvore, cujos galhos começam a envergar e partir com o peso e queimar em algumas pontas, onde as luzes entram em curto. E começamos a remendar a árvore para não trocar os enfeites.

Mas chega de metáforas.

Claro que as perspectivas histórica e historiográfica não entram diretamente nesse âmbito, de efetuar mudanças drásticas na sociedade atual, mas uma compreensão desse acúmulo de processos facilitaria o questionamento crítico e talvez o direcionasse a um entendimento do que pode e deve ser mudado. 

Acima de tudo, conduz a um contexto onde a herança deixa de ser uma desculpa política e passa a ser uma perspectiva de escolha - daquilo que queremos manter ou modificar.

Como eu disse no início, xingar o governo é fácil, difícil é entender quem é esse governo, por que ele está ali, o que ele realmente muda, o que ele não muda, quais são seus discursos e retóricas, quais são os discursos e retóricas de quem o critica e principalmente, quais as mudanças que realmente queremos - enquanto grupo, sociedade, estado, nação.
 
De certa forma, o erro não está em reclamar e muito menos em expressar a insatisfação ainda que ela seja mal elaborada (E como já disse um dia, o povo sempre se questiona. Sempre. O problema é expressar esse questionamento. Seja ele primitivo ou elaborado). O que me incomoda é saber que mesmo que a população (seja qualquer camada ou grupo social) tenha essa exasperação atravessando a garganta, nada é feito no sentido de auxiliar a sociedade a compreender melhor sua própria história. Talvez um pouco menos de Braudel e um pouco mais de Febvre. São combates mesmo acontecendo lá fora, e a covardia (ou presunção acadêmica) que mantêm a historiografia distante da própria sociedade estudada que mantém a história como refém ou alibi de quaisquer reivindicações políticas, de qualquer lado que estejam.



É no mínimo curioso que enquanto a História - e quase todas as ciências sociais - lutem por defender sua relevância diante das sociedades pós-contemporâneas, deixem de lado justamente o grau mais efetivo de contrapartida que poderiam oferecer: um questionamento vindo de uma compreensão maior da dimensão histórica de sua própria sociedade.

O questionamento já existe. O que falta é um pouco de contexto e perspectiva de processo histórico para maior clareza. 

Só um pouco já é suficiente.
 
Exemplo disso são as fotos que ilustram esses post. Todas tiradas desse site Olhe os Muros, que como o próprio nome explica, basta olhar para entender.

Detalhe, eu só peguei fotos de muros brasileiros.

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